sábado, 20 de dezembro de 2014

A estética do abstrato

Frequentemente observo debates em que bons argumentadores, com boa escrita ou boa oratória, usam tal habilidade como trunfo para atestar sua razão ou soberania perante seus oponentes. Isso parece sugerir que nenhuma boa ideia ou boa intenção possa brotar daquele que gagueja ao falar ou erra a regra gramatical ao escrever. Esquece-se de que as ideias e sentimentos são infinitos e abstratos e, as palavras, pronunciadas ou escritas, meras representações tentando aproximar-se de seu significado.

Seguindo a lógica da estética, restaria para o analfabeto que mal consegue articular palavras para expressar-se apenas calar-se na mais insignificante passividade. O que é um equívoco prepotente. A razão e até mesmo a poesia podem residir em qualquer pessoa, independente das suas ferramentas para manifestá-las. O receptor é que deve ser humilde e tentar estar apto a absorver a essência do que se apresenta, sem menosprezá-la de antemão por sua estética pouco atraente ou aprová-la de antemão por sua estética impecável.

Essa supervalorização da estética se dá principalmente na forma escrita, pois ali se tem mais tempo para lapidar as ideias do que as pronunciando espontaneamente. Assim, apesar de sentir um prazer imenso ao ler textos bem produzidos, minha única preocupação ao constatar que um sujeito escreve admiravelmente bem é lembrar que tal habilidade não tem a menor relação com caráter. Pois da mesma forma como a proposta mais nobre pode ser prontamente rejeitada quando colocada de forma inculta ou desarticulada, também a proposta mais desprezível, quando escrita dentro das normas e bem argumentada, pode convencer até os mais atentos. E a aceitação pela estética pode assim significar a aceitação de um pacote opaco contendo a essência que ela carrega, dando margens à disseminação de injúrias e preconceitos que nada tem a acrescentar de positivo ou construtivo ao leitor.

Devemos prestar atenção ao que lemos e ouvimos. Não nos deixar impressionar pela estética do texto ou do discurso ao tirar conclusões a seu respeito, mas nos deter à essência do que é dito. Entendamos por "o que é dito" não somente o que é literalmente escrito ou falado, mas também escrito ou falado nas entrelinhas. É importante ler mais de uma vez sempre que possível, analisar atentamente antes de concluir, responder ou ainda propagar. Alguém pode estar contando com a nossa desatenção e ingenuidade para beneficiar-se.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

"Como se fosse"

Em alguns dias da semana eu almoço a mesma empada de legumes, no mesmo restaurante. E quando esta opção está em falta peço por alternativas que não contenham carne na composição. Foi o que aconteceu no dia em questão.

Sempre foi comum ouvir dos atendentes, onde quer que eu fosse, propostas que de tão incoerentes soam engraçadas. "Algum salgado sem carne? Temos sim. Tem este de frango, este outro de atum e este aqui de presunto", me informou a senhora simpática numa lanchonete. A naturalidade com que se faz a exclusão de alguns corpos do conceito de "carne" sempre me incomodou, pois evidencia a distância a que o indivíduo está de enxergar sequer o superficial: "carne" não é sinônimo de "gado", e sim de "corpo", qualquer corpo, em qualquer circunstância.

Mas nesse dia, então, sem empada, pedi por outra opção sem carne e o senhor sorridente do tal restaurante me ofereceu um assado de queijo com presunto. Hesitei por alguns segundos pelo "tilt" cerebral e enfim ele deu-se por conta, rindo. "Ah, desculpe! Presunto é como se fosse carne, pra você, né...".

"Como se fosse". Devo ter dado algum sorriso meio bobo, não lembro, mas é o que faço quando fico sem palavras. Nem mesmo lembro o que comprei, mas dei as costas e pelo caminho fui pensando. "Como se fosse". Tomei um café, fui pro trabalho. "Como se fosse". Peguei um ônibus, fui pra casa. "Como se fosse". Tentei lembrar de definição mais importuna que já tivesse ouvido, mas nenhuma se comparava.

"Como-se-fosse" definitivamente foram as três palavras que quebraram minha postura. Foi como se nelas coubessem espremidos todos os equívocos dos animais humanos a respeito dos animais não-humanos. Como se, embora curtas, possuíssem peso suficiente pra esmagar toda minha pequena grande luta contra esses equívocos (pra não chamar de preconceitos). Como se reduzissem um fato biológico a uma mera ilusão pessoal, já que era "como se fosse, pra mim".

Esclareço que a questão aqui não é o ato em si de comer carne ou não. Esse seria um assunto bem mais nebuloso e complexo de tratar, mesmo depois de se esclarecer fatos básicos. A questão aqui é que até mesmo esses fatos são ignorados. O quanto a visão míope acerca do que é carne, do que é corpo e do que é animal está enraizada nos nossos conceitos (nós, animais humanos). Tão enraizada que, quando alguém apresenta qualquer interpretação diferente (como, por exemplo, sugerir que um porco também seja feito de carne), ela é automaticamente classificada na exceção do "como se fosse, PRA VOCÊ".

Vivemos acostumados a excluir animais humanos do conceito de Animal. Dividimos também o conceito de animal em hierarquias imprecisas nas quais uns são mais animais que outros. Uns são adorados, outros são reduzidos ao status de carne. E outros, ainda, não são nem assim reconhecidos, dependendo da "porção" em que seus corpos estão dispostos. Um porco se reduz à carne-de-porco, quando espetado inteiro sobre a brasa. Mas um porco fatiado minuciosamente entre alfaces e pão francês, um frango desfiado num salpicão ou um peixe triturado em patê se descaracterizam ao ponto de seus corpos nem mesmo serem reconhecidos como “carne”. Por alguma razão, apenas o gado permanece com tal definição, mesmo quando moído. Será pelos seus 300 quilos? Ou pelo seu sabor mais atraente? Ou pelo seu consumo mais disseminado? De qualquer forma, o que são então esses outros animais menos relevantes, que nem mesmo pra "carne" servem? São farelos de coisa nenhuma? Serragem cozida com Sazón?

Comecei a questionar quantos outros fatos, dentro de outros contextos, boiam na superfície do "como se fosse", empurrados à margem da razão por uma cultura equivocada, seja intencionalmente ou não. E percebi que essa cegueira é tão volátil, tão comum e tão naturalizada que me vi apavorada. Se trata também do gay que exige direitos “como se fosse” igual ao heterossexual, da prostituta que pede respeito “como se fosse” digna dele, do infrator que denuncia o abuso policial “como se fosse” inocente para isso, de todos os indivíduos rejeitados que não pude me dar conta ainda, chegando perto de serem “quase alguma coisa”, ou nem isso.

Desculpem, mas não me parece haver lógica em referir-se a fatos "como se fossem" fatos. Porque eles simplesmente o são. E não o são para mim, nem para ninguém, provavelmente. São por si próprios, são porque são e ponto final, independente de enxergarmos isso, de admitirmos isso. Mas eu espero que realmente possamos enxergar e admitir.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Opinião

Eu diria que ter uma opinião não é um direito, mas antes disso, é uma natureza inevitável de qualquer pessoa. O direito vem depois, garantindo a todas as pessoas a possibilidade de expôr essa opinião. Acho que a questão é que há uma diferença antagônica entre as formas de entregar tal opinião ao receptor: dilui-la numa xícara de café quente, ou fundi-la num projétil de metralhadora. É essa diferença que muita gente não enxerga ou da qual faz mal uso. As pessoas normalmente esquecem que, quando falamos em opinião, falamos de hipóteses, e não de fatos. Fica fácil pra cada pessoa inventar sua própria realidade, mas difícil para todas as outras adaptarem-se a ela. Eu sugiro que a gente pratique mais a tolerância. Ajeitemos nossas salas de estar e convidemos nossos oponentes para um cafezinho - com biscoitos. Seja bem vindo.