segunda-feira, 15 de junho de 2015

O preço da esmola

Moro em uma cidade que, embora seja pequena, é urbanizada. Automóveis e pessoas, bem vestidas e exalando a perfumes distintos, amontoam-se pelas ruas asfaltadas entre prédios de diversos tamanhos. Tal cenário se estende pela maioria das cidades do estado, do país, do mundo. E no meio disso, invariavelmente, circulam os marginais – como o nome sugere, aqueles que vivem às margens dessa sociedade. Os desprivilegiados que, por alguma razão, não possuem acesso aos mesmos recursos daqueles que os desprezam. Falo não necessariamente dos marginais criminalizados, compelidos a tomar de quem possui aquilo que necessitam, mas antes disso, falo daqueles que têm a humildade de pedir.

Não sei de onde ou quando surgiu tal desprezo, mas é inegável que nossa sociedade cultiva aversão aos marginais em sua essência; os menos providos, os isentos de “status social”, como se tal condição fosse mais condenável até mesmo do que um crime propriamente dito. Moradores de rua fazem parte do mesmo cenário de ruas asfaltadas repletas de automóveis e prédios imensos recheados de pessoas impecáveis, porém são, para elas, invisíveis. Nota-se facilmente o desconforto com que comumente se reage a um pedido de “me dá um troco?”, ou ainda, “me dá comida?”, independente de tal súplica provir de uma criança ou idoso em evidente estado de vulnerabilidade.

Isso pode nos levar a crer que o problema em questão é a falta de compaixão, mas não é. O nosso problema é, evidentemente, com o alvo dessa compaixão. Muitos se comovem e colaboram com campanhas para ajudar pessoas, ou mesmo animais, com diversas vulnerabilidades, quando cria-se um rótulo amigável para tal campanha de forma a livrar o doador do contato direto com a realidade do beneficiado. Mas quando essa realidade paira diante de nossos olhos – ou mesmo pés, nas calçadas onde pisamos - a reação costuma ser outra: de indiferença a declarado desprezo. Não queremos contato com aquilo que é feio ou cheira mal, pois isso fere à nossa superioridade, ainda que tal contato não seja físico, e sim mera troca de palavras.

A pior parte de todo esse processo de desprezo é quando se criam teorias absurdas e fantasiosas para justificar tal repúdio – afinal, ninguém quer admitir seu próprio preconceito. Pelo menos por aqui, onde vivo, cresci ouvindo que “não se deve dar dinheiro a pessoas de rua”, e os motivos para isso são apelativos a um ponto revoltante. “Pessoas de rua vão gastar o dinheiro com coisas desnecessárias”, como bebidas alcoólicas, por exemplo. E o pior, “crianças de rua levam o dinheiro aos pais, para que comprem coisas desnecessárias”; “se for doar algo, então doe comida, e não dinheiro”; “esmola não resolve o problema”. É absurdo, mas apesar disso, ouvimos afirmações desse tipo tantas vezes, desde tão cedo, que as naturalizamos e tomamos por verdade. Mas será mesmo que acreditamos em tais afirmações? Ou apenas as usamos como um pretexto para não precisar fazer doações?

Há muitos anos, na porta de um mercado, um homem desconhecido me reprimiu quando entreguei algumas moedas a uma criança que me pediu. E depois daquele dia, por muito tempo, não me permiti dar sequer uma moeda novamente. Até recentemente não me questionava a respeito do porque, afinal, deixei que um desconhecido, embalado por mitos que ouço desde a infância, influenciasse na minha forma de agir nessas situações. Então passei a me questionar por que um morador de rua é menos digno do que eu de possuir alguns trocados na mão para decidir sozinho o que lhe é necessário ou não comprar.

Quando subentendemos previamente que uma pessoa carente usará a doação para finalidades duvidosas, já estamos expressando um preconceito inegável. Quando predefinimos que o ideal é doar alimento, estamos assumindo que a única coisa realmente necessária na vida dessas pessoas é comer, o básico para que não morram, ignorando todas as outras possíveis necessidades como higiene, saúde, moradia, etc., pois julgamos que estas pessoas estão num patamar abaixo do nosso – mais ou menos como cães de rua - e portanto não são dignas de saciar demais necessidades, da mesma forma como somos. Quando tiramos de alguém a autonomia de decidir por si mesmo o que lhe é primordial, doando o bem propriamente dito (como comida) ao invés de dinheiro, deixamos claro que não temos confiança na postura dessa pessoa quanto à forma como ela empregará tal dinheiro. Mas será que podemos chamar de compaixão ou benevolência o ato de ajudar a alguém sem ter confiança nele? Neste caso, doamos-lhe o alimento, mas aprisionamos a sua moral, pois não lhe damos chance de exercê-la. Em outras palavras, aprisionamos o indivíduo na sua insignificância de mero beneficiado sem voz e sem dignidade o suficiente para fazer escolhas. O mesmo acontece também nas grandes campanhas que acumulam e doam alimentos ao invés de dinheiro. Auxiliamos, sim, por um lado, mas por outro, ofendemos, pois mantemos a nossa soberania; o controle daqueles que possuem, perante aqueles que não possuem.


Há poucos meses, uma garotinha que vende artesanatos, de uma família conhecida popularmente como “bugres”, me abordou em um bar, pedindo dinheiro ou algum lanche. Ao contrário de outras vezes, em que eu pedia ao garçom um refrigerante ou cachorro quente e o entregava à garota, resolvi dar-lhe 5 reais. Foi estranho para mim, depois de tanto tempo, me permitir tomar tal atitude, ficando pensativa depois, por alguns minutos. Será que pode mesmo haver algo coerentemente “errado” em doar dinheiro a uma criança de rua? A menos que se tome uma atitude alternativa e melhor, é claro, simplesmente deixar de doar não me parece melhor do que doar. Evidentemente que a doação espontânea não resolve a raiz do problema, mas pelo menos o faz temporariamente – o que é bem melhor do que nada. Realmente não consigo ver de que forma doar um pouco de dinheiro poderia ser prejudicial àquela menina, ou à família dela. Se ela preferisse comprar comida, tudo bem. Se preferisse comprar shampoo, tudo bem também. Se preferisse comprar chicletes ou bolinhas de gude, também não seria da minha conta. Se desse aos pais e eles finalmente comprassem cachaça, é uma pena, mas de forma alguma isso significa que toda e qualquer situação similar terminará da mesma forma, não servindo como justificativa para que eu nunca mais doe. A generalização é um dos piores pretextos para a má vontade. Ademais, não creio que posso decidir pelo outro o que lhe é ou não necessário, tampouco sinto que estou de fato fazendo o bem, se não confio naquele que ajudo ao ponto de dar-lhe uma chance. Apenas espero que aqueles trocados tenham sido úteis, de alguma forma.