quinta-feira, 30 de julho de 2015

"Mas nem peixe?"

Não consumo carne já há um bom tempo e, assim como relatam outras pessoas que também não consomem, ouvimos frequentemente a frase que intitula este texto. Seja ao pedir por alguma opção de comida sem carne, em uma lanchonete ou padaria, ou mesmo ao conversar com qualquer pessoa que questione o motivo desta postura alimentar, a indagação surge quase automaticamente. No caso da lanchonete ou padaria, o questionamento até é mais compreensível, já que muitas pessoas não consomem carne vermelha por razões que envolvem a saúde pessoal, mantendo o consumo de carnes mais saudáveis como peixe ou frango; o atendente do estabelecimento não conhece os motivos do cliente, afinal. Mas o intrigante é quando essa pergunta surge mesmo depois de se dar um motivo esclarecedor, como no caso dos diálogos pessoais. Ainda que se diga primeiramente que não se consome carne por razões ideológicas, “pelos animais”, surge a ressalva do “mas nem peixe?”, como se, por alguma razão, tais animais fossem “menos animais que outros”, ou merecessem menos consideração como tal. O que quero questionar nesse texto são os motivos dessa consideração grosseiramente equivocada. Por que peixes são considerados “menos animais que outros”? Tema semelhante já foi abordado no texto “Como se fosse”, publicado neste blog. Porém, aqui a proposta de análise é um pouco diferente.

Lembro que há aproximadamente 5 anos fui em um “Pesque e Pague” com conhecidos. Ninguém pretendia pescar, apenas usufruir do ambiente agradável que lá tinha (uma espécie de balneário), mas ainda assim não pude deixar de reparar no propósito principal do local. Havia no chão alguns tanques paralelos, semelhantes a minúsculas piscinas sem reboco, cheios de peixes enormes (não sei mensurar quantos quilos tinham), alguns cor-de-laranja vivo e outros de um cinza claro (não sei identificar suas raças), porém, a água desses tanques era rasa demais, de forma como o dorso dos animais ficava exposto para fora e suas barrigas possivelmente arrastassem no fundo do recipiente, quando nadavam (ou esforçavam-se para isso). Dali eram apanhados diretamente por uma pequena rede com um longo cabo de metal. Provavelmente esse era o modo padrão de pescar aqueles peixes, mas me marcou em particular o momento em que um homem, acompanhado de um garoto pequeno, de aproximadamente uns 4 anos de idade, retirou de um tanque um peixe laranja, enorme e brilhante, e soltou-o numa pequena calçada. Então pegou um bastão grosso de madeira e, assim que o peixe começou a parar de debater-se freneticamente, acertou-lhe seguidas vezes na cabeça, com força, até que ele parasse completamente. Isso tudo na frente do pequeno garoto - e de todos os outros presentes, como eu. Me questiono como pode tal atitude ter sido naturalizada ao ponto de ninguém nem mesmo conseguir ver algo de inapropriado nela. Era como se o homem batesse no peixe como se racha um pedaço de lenha, sem consciência, sem sistema nervoso, indiferente... Me questiono se o mesmo aconteceria caso a venda fosse de bezerros, ou mesmo galinhas. Será que se degolaria o bezerro em público? Ou mesmo, se desnucaria o frango na frente da criança? Costuma haver no manejo de outros animais um cuidado que se contrasta com o trato dado aos peixes. E nem me refiro ao cuidado com o animal em si, mas ao cuidado com quem participa da cena – no caso, a criança ou os outros visitantes do local, que podem ser afetados psicológica ou emocionalmente. Animais “de verdade” possuem relevância como tal e, portanto, poder para que sua morte ou dor nos causem sensações desagradáveis como compaixão seguida de angústia e remorso. Afastam-se as crianças do abatedouro – bem como me impediram de ver um porco ser morto, quando eu era criança, permitindo-me apenas acompanhar seu desmembramento. A alegação fora de que a morte, em si, era perturbadora demais, considerando os gritos e a luta do animal pela vida, depois da facada no peito. Fizeram bem em me poupar dessa cena, aliás. Mas o mesmo nunca aconteceu nas pescarias que fiz, sempre acompanhada de adultos. Era como se os peixes retirados do anzol com a boca retalhada e cravados num pedaço de pau para morrer lentamente fossem semelhantes a uma espiga de milho colhida e guardada num saco. Aquilo não poderia me traumatizar, de forma alguma. Da mesma forma como matar um peixe a pauladas não incomoda ou desperta desconforto em quem assiste.

Como diz o famoso ditado, “o que os olhos não veem, o coração não sente”, poderíamos adapta-lo também para “o que os ouvidos não ouvem, o coração não sente”. De uma forma geral, poderíamos dizer que todos os nossos sentidos e percepções determinam a nossa opinião ou julgamento a respeito de algo, seja ele vivo ou não. Em outras palavras, nossos sentidos são traiçoeiros e podem nos levar a construir conceitos que destoam da realidade. Por exemplo, se tentarmos responder rapidamente de qual animal pouparíamos a vida, entre um cavalo e um rato, provavelmente pensaríamos em poupar o cavalo. Mas, analisando racionalmente, qual motivo tivemos de fato para decidir isso tão rápido? É claro que, com mais calma, poderia-se analisar outros aspectos na escolha – como a utilidade de um cavalo ou o prejuízo causado por um rato, considerado “praga”. Mas, a princípio, me parece evidente que o maior motivo da escolha é a representação física de cada animal. Consideramos, erroneamente, que um animal maior possui dor mais relevante – o que não faz sentido, já que, ambos possuindo sistema nervoso similar, é provável que a dor lhes seja proporcional. O tamanho também influencia no valor que damos ao animal, considerando que os maiores aparentam ter maior relevância moral. Aqui, os peixes, especialmente os pequenos, estão em desvantagem. Podemos considerar também que o som – ou a ausência dele – evidencia a intensidade da dor sentida pelo animal. Aqui, também, os peixes estão em desvantagem, pois não emitem sons (ao menos não sons audíveis a nós). Podemos considerar também que a ausência/presença de sangue evidencia a ausência/presença de lesão e dor. Neste caso, os peixes também estão em desvantagem, expelindo uma quantidade pequena de sangue em seu corte. Além disso, a manifestação física do animal conta como demonstrativo de dor – enquanto um cavalo é capaz de usar seus membros para tentar correr, lutar ou mesmo espernear em protesto, o peixe não possui membros para isso, limitando-se a debater-se. A expressão facial não pode ser subestimada, já que muitos animais conseguem nos dizer exatamente o que estão sentindo somente com o olhar, que dirá com demais expressões como piscadas, lágrimas, movimento das orelhas e etc. Peixes também estão em desvantagem neste aspecto, já que sua expressão facial é praticamente invariável. E, por fim, a morte por asfixia que sofre um peixe fora da água, em contato com o ar, é quase invisível para nós, já que estamos acostumados com um conceito de asfixia apavorante e oposto que acontece justamente dentro da água, na ausência de ar. Podemos, portanto, observar um peixe depositado sobre uma calçada sem nos dar por conta de que ele está sentindo o mesmo que sentiríamos no fundo de um lago, com uma rocha amarrada nos pés. Tudo isso contribui para que não notemos, ou mesmo desconsideremos não somente a dor vivida por peixes no momento da sua morte, mas também, as demais emoções e sensações vividas por eles ao longo de suas vidas inteiras, criando com eles uma relação de pouca familiaridade e, portanto, menor empatia, o que acaba nos levando a lhes atribuir menor relevância moral. Pode-se dizer que peixes se resumem a uma espécie de “pedaço de carne que se mexe”, um animal incompleto ou inacabado que não se equipara aos demais.

Tal consideração falha coloca os peixes em situações medíocres não somente quando se trata de finalidades alimentares, mas também para finalidades como entretenimento. O uso de aquários em ambientes internos como um recurso decorativo é um bom exemplo do quanto peixes talvez estejam mais perto de serem considerados objetos do que animais. Já pássaros, também confinados em pequenos ambientes como gaiolas, despertam maior compaixão e empatia em boa parte das pessoas, pois entende-se que cantar e esgueirar-se entre um poleiro e outro é uma manifestação clara do desejo de voar livre por quilômetros céu afora. Enquanto isso, um peixe, nadando tranquila e silenciosamente de um lado para o outro em um pequeno aquário belamente decorado não tem seus anseios por nadar quilômetros mar adentro questionados, nem mesmo considerados. Pensa-se que, para um peixe, ter água basta – mesmo que essa água esteja presa em um minúsculo pacote plástico que se dá de brinde às crianças, em feiras. Água basta para que ele respire, apenas! Mas será que somente respirar pode ser considerado “viver”? Será que podemos manter pelos peixes essa consideração tão escassa?

Retomando a questão dos nossos sentidos e percepções falhos, podemos expandir esta reflexão para além dos peixes. Podemos considera-los somente como o objeto em questão nesta discussão, mas substituí-los por outros objetos, em outros contextos. Ainda tratando de animais, poderíamos analisar a pouca relevância que damos à demais espécies pela mesma razão da nossa percepção parcial e traiçoeira. Por exemplo, o tratamento hediondo que se dá no preparo de mariscos como siris ou caranguejos que, devido à sua carapaça e à impossibilidade de serem temperados externamente, são afogados em água fervente temperada, tendo suas patas quebradas para facilitar o manejo e evitar fugas. Podemos, ainda, ultrapassar a questão animal e considerar tudo o que pode estar ao nosso redor esperando pela nossa sensibilidade de lhe notar e lhe dar um melhor tratamento, enquanto estamos cegados pelos costumes que não nos instigam a observar além do que os olhos veem, ou os ouvidos escutam.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

O preço da esmola

Moro em uma cidade que, embora seja pequena, é urbanizada. Automóveis e pessoas, bem vestidas e exalando a perfumes distintos, amontoam-se pelas ruas asfaltadas entre prédios de diversos tamanhos. Tal cenário se estende pela maioria das cidades do estado, do país, do mundo. E no meio disso, invariavelmente, circulam os marginais – como o nome sugere, aqueles que vivem às margens dessa sociedade. Os desprivilegiados que, por alguma razão, não possuem acesso aos mesmos recursos daqueles que os desprezam. Falo não necessariamente dos marginais criminalizados, compelidos a tomar de quem possui aquilo que necessitam, mas antes disso, falo daqueles que têm a humildade de pedir.

Não sei de onde ou quando surgiu tal desprezo, mas é inegável que nossa sociedade cultiva aversão aos marginais em sua essência; os menos providos, os isentos de “status social”, como se tal condição fosse mais condenável até mesmo do que um crime propriamente dito. Moradores de rua fazem parte do mesmo cenário de ruas asfaltadas repletas de automóveis e prédios imensos recheados de pessoas impecáveis, porém são, para elas, invisíveis. Nota-se facilmente o desconforto com que comumente se reage a um pedido de “me dá um troco?”, ou ainda, “me dá comida?”, independente de tal súplica provir de uma criança ou idoso em evidente estado de vulnerabilidade.

Isso pode nos levar a crer que o problema em questão é a falta de compaixão, mas não é. O nosso problema é, evidentemente, com o alvo dessa compaixão. Muitos se comovem e colaboram com campanhas para ajudar pessoas, ou mesmo animais, com diversas vulnerabilidades, quando cria-se um rótulo amigável para tal campanha de forma a livrar o doador do contato direto com a realidade do beneficiado. Mas quando essa realidade paira diante de nossos olhos – ou mesmo pés, nas calçadas onde pisamos - a reação costuma ser outra: de indiferença a declarado desprezo. Não queremos contato com aquilo que é feio ou cheira mal, pois isso fere à nossa superioridade, ainda que tal contato não seja físico, e sim mera troca de palavras.

A pior parte de todo esse processo de desprezo é quando se criam teorias absurdas e fantasiosas para justificar tal repúdio – afinal, ninguém quer admitir seu próprio preconceito. Pelo menos por aqui, onde vivo, cresci ouvindo que “não se deve dar dinheiro a pessoas de rua”, e os motivos para isso são apelativos a um ponto revoltante. “Pessoas de rua vão gastar o dinheiro com coisas desnecessárias”, como bebidas alcoólicas, por exemplo. E o pior, “crianças de rua levam o dinheiro aos pais, para que comprem coisas desnecessárias”; “se for doar algo, então doe comida, e não dinheiro”; “esmola não resolve o problema”. É absurdo, mas apesar disso, ouvimos afirmações desse tipo tantas vezes, desde tão cedo, que as naturalizamos e tomamos por verdade. Mas será mesmo que acreditamos em tais afirmações? Ou apenas as usamos como um pretexto para não precisar fazer doações?

Há muitos anos, na porta de um mercado, um homem desconhecido me reprimiu quando entreguei algumas moedas a uma criança que me pediu. E depois daquele dia, por muito tempo, não me permiti dar sequer uma moeda novamente. Até recentemente não me questionava a respeito do porque, afinal, deixei que um desconhecido, embalado por mitos que ouço desde a infância, influenciasse na minha forma de agir nessas situações. Então passei a me questionar por que um morador de rua é menos digno do que eu de possuir alguns trocados na mão para decidir sozinho o que lhe é necessário ou não comprar.

Quando subentendemos previamente que uma pessoa carente usará a doação para finalidades duvidosas, já estamos expressando um preconceito inegável. Quando predefinimos que o ideal é doar alimento, estamos assumindo que a única coisa realmente necessária na vida dessas pessoas é comer, o básico para que não morram, ignorando todas as outras possíveis necessidades como higiene, saúde, moradia, etc., pois julgamos que estas pessoas estão num patamar abaixo do nosso – mais ou menos como cães de rua - e portanto não são dignas de saciar demais necessidades, da mesma forma como somos. Quando tiramos de alguém a autonomia de decidir por si mesmo o que lhe é primordial, doando o bem propriamente dito (como comida) ao invés de dinheiro, deixamos claro que não temos confiança na postura dessa pessoa quanto à forma como ela empregará tal dinheiro. Mas será que podemos chamar de compaixão ou benevolência o ato de ajudar a alguém sem ter confiança nele? Neste caso, doamos-lhe o alimento, mas aprisionamos a sua moral, pois não lhe damos chance de exercê-la. Em outras palavras, aprisionamos o indivíduo na sua insignificância de mero beneficiado sem voz e sem dignidade o suficiente para fazer escolhas. O mesmo acontece também nas grandes campanhas que acumulam e doam alimentos ao invés de dinheiro. Auxiliamos, sim, por um lado, mas por outro, ofendemos, pois mantemos a nossa soberania; o controle daqueles que possuem, perante aqueles que não possuem.


Há poucos meses, uma garotinha que vende artesanatos, de uma família conhecida popularmente como “bugres”, me abordou em um bar, pedindo dinheiro ou algum lanche. Ao contrário de outras vezes, em que eu pedia ao garçom um refrigerante ou cachorro quente e o entregava à garota, resolvi dar-lhe 5 reais. Foi estranho para mim, depois de tanto tempo, me permitir tomar tal atitude, ficando pensativa depois, por alguns minutos. Será que pode mesmo haver algo coerentemente “errado” em doar dinheiro a uma criança de rua? A menos que se tome uma atitude alternativa e melhor, é claro, simplesmente deixar de doar não me parece melhor do que doar. Evidentemente que a doação espontânea não resolve a raiz do problema, mas pelo menos o faz temporariamente – o que é bem melhor do que nada. Realmente não consigo ver de que forma doar um pouco de dinheiro poderia ser prejudicial àquela menina, ou à família dela. Se ela preferisse comprar comida, tudo bem. Se preferisse comprar shampoo, tudo bem também. Se preferisse comprar chicletes ou bolinhas de gude, também não seria da minha conta. Se desse aos pais e eles finalmente comprassem cachaça, é uma pena, mas de forma alguma isso significa que toda e qualquer situação similar terminará da mesma forma, não servindo como justificativa para que eu nunca mais doe. A generalização é um dos piores pretextos para a má vontade. Ademais, não creio que posso decidir pelo outro o que lhe é ou não necessário, tampouco sinto que estou de fato fazendo o bem, se não confio naquele que ajudo ao ponto de dar-lhe uma chance. Apenas espero que aqueles trocados tenham sido úteis, de alguma forma.

sábado, 20 de dezembro de 2014

A estética do abstrato

Frequentemente observo debates em que bons argumentadores, com boa escrita ou boa oratória, usam tal habilidade como trunfo para atestar sua razão ou soberania perante seus oponentes. Isso parece sugerir que nenhuma boa ideia ou boa intenção possa brotar daquele que gagueja ao falar ou erra a regra gramatical ao escrever. Esquece-se de que as ideias e sentimentos são infinitos e abstratos e, as palavras, pronunciadas ou escritas, meras representações tentando aproximar-se de seu significado.

Seguindo a lógica da estética, restaria para o analfabeto que mal consegue articular palavras para expressar-se apenas calar-se na mais insignificante passividade. O que é um equívoco prepotente. A razão e até mesmo a poesia podem residir em qualquer pessoa, independente das suas ferramentas para manifestá-las. O receptor é que deve ser humilde e tentar estar apto a absorver a essência do que se apresenta, sem menosprezá-la de antemão por sua estética pouco atraente ou aprová-la de antemão por sua estética impecável.

Essa supervalorização da estética se dá principalmente na forma escrita, pois ali se tem mais tempo para lapidar as ideias do que as pronunciando espontaneamente. Assim, apesar de sentir um prazer imenso ao ler textos bem produzidos, minha única preocupação ao constatar que um sujeito escreve admiravelmente bem é lembrar que tal habilidade não tem a menor relação com caráter. Pois da mesma forma como a proposta mais nobre pode ser prontamente rejeitada quando colocada de forma inculta ou desarticulada, também a proposta mais desprezível, quando escrita dentro das normas e bem argumentada, pode convencer até os mais atentos. E a aceitação pela estética pode assim significar a aceitação de um pacote opaco contendo a essência que ela carrega, dando margens à disseminação de injúrias e preconceitos que nada tem a acrescentar de positivo ou construtivo ao leitor.

Devemos prestar atenção ao que lemos e ouvimos. Não nos deixar impressionar pela estética do texto ou do discurso ao tirar conclusões a seu respeito, mas nos deter à essência do que é dito. Entendamos por "o que é dito" não somente o que é literalmente escrito ou falado, mas também escrito ou falado nas entrelinhas. É importante ler mais de uma vez sempre que possível, analisar atentamente antes de concluir, responder ou ainda propagar. Alguém pode estar contando com a nossa desatenção e ingenuidade para beneficiar-se.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

"Como se fosse"

Em alguns dias da semana eu almoço a mesma empada de legumes, no mesmo restaurante. E quando esta opção está em falta peço por alternativas que não contenham carne na composição. Foi o que aconteceu no dia em questão.

Sempre foi comum ouvir dos atendentes, onde quer que eu fosse, propostas que de tão incoerentes soam engraçadas. "Algum salgado sem carne? Temos sim. Tem este de frango, este outro de atum e este aqui de presunto", me informou a senhora simpática numa lanchonete. A naturalidade com que se faz a exclusão de alguns corpos do conceito de "carne" sempre me incomodou, pois evidencia a distância a que o indivíduo está de enxergar sequer o superficial: "carne" não é sinônimo de "gado", e sim de "corpo", qualquer corpo, em qualquer circunstância.

Mas nesse dia, então, sem empada, pedi por outra opção sem carne e o senhor sorridente do tal restaurante me ofereceu um assado de queijo com presunto. Hesitei por alguns segundos pelo "tilt" cerebral e enfim ele deu-se por conta, rindo. "Ah, desculpe! Presunto é como se fosse carne, pra você, né...".

"Como se fosse". Devo ter dado algum sorriso meio bobo, não lembro, mas é o que faço quando fico sem palavras. Nem mesmo lembro o que comprei, mas dei as costas e pelo caminho fui pensando. "Como se fosse". Tomei um café, fui pro trabalho. "Como se fosse". Peguei um ônibus, fui pra casa. "Como se fosse". Tentei lembrar de definição mais importuna que já tivesse ouvido, mas nenhuma se comparava.

"Como-se-fosse" definitivamente foram as três palavras que quebraram minha postura. Foi como se nelas coubessem espremidos todos os equívocos dos animais humanos a respeito dos animais não-humanos. Como se, embora curtas, possuíssem peso suficiente pra esmagar toda minha pequena grande luta contra esses equívocos (pra não chamar de preconceitos). Como se reduzissem um fato biológico a uma mera ilusão pessoal, já que era "como se fosse, pra mim".

Esclareço que a questão aqui não é o ato em si de comer carne ou não. Esse seria um assunto bem mais nebuloso e complexo de tratar, mesmo depois de se esclarecer fatos básicos. A questão aqui é que até mesmo esses fatos são ignorados. O quanto a visão míope acerca do que é carne, do que é corpo e do que é animal está enraizada nos nossos conceitos (nós, animais humanos). Tão enraizada que, quando alguém apresenta qualquer interpretação diferente (como, por exemplo, sugerir que um porco também seja feito de carne), ela é automaticamente classificada na exceção do "como se fosse, PRA VOCÊ".

Vivemos acostumados a excluir animais humanos do conceito de Animal. Dividimos também o conceito de animal em hierarquias imprecisas nas quais uns são mais animais que outros. Uns são adorados, outros são reduzidos ao status de carne. E outros, ainda, não são nem assim reconhecidos, dependendo da "porção" em que seus corpos estão dispostos. Um porco se reduz à carne-de-porco, quando espetado inteiro sobre a brasa. Mas um porco fatiado minuciosamente entre alfaces e pão francês, um frango desfiado num salpicão ou um peixe triturado em patê se descaracterizam ao ponto de seus corpos nem mesmo serem reconhecidos como “carne”. Por alguma razão, apenas o gado permanece com tal definição, mesmo quando moído. Será pelos seus 300 quilos? Ou pelo seu sabor mais atraente? Ou pelo seu consumo mais disseminado? De qualquer forma, o que são então esses outros animais menos relevantes, que nem mesmo pra "carne" servem? São farelos de coisa nenhuma? Serragem cozida com Sazón?

Comecei a questionar quantos outros fatos, dentro de outros contextos, boiam na superfície do "como se fosse", empurrados à margem da razão por uma cultura equivocada, seja intencionalmente ou não. E percebi que essa cegueira é tão volátil, tão comum e tão naturalizada que me vi apavorada. Se trata também do gay que exige direitos “como se fosse” igual ao heterossexual, da prostituta que pede respeito “como se fosse” digna dele, do infrator que denuncia o abuso policial “como se fosse” inocente para isso, de todos os indivíduos rejeitados que não pude me dar conta ainda, chegando perto de serem “quase alguma coisa”, ou nem isso.

Desculpem, mas não me parece haver lógica em referir-se a fatos "como se fossem" fatos. Porque eles simplesmente o são. E não o são para mim, nem para ninguém, provavelmente. São por si próprios, são porque são e ponto final, independente de enxergarmos isso, de admitirmos isso. Mas eu espero que realmente possamos enxergar e admitir.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Opinião

Eu diria que ter uma opinião não é um direito, mas antes disso, é uma natureza inevitável de qualquer pessoa. O direito vem depois, garantindo a todas as pessoas a possibilidade de expôr essa opinião. Acho que a questão é que há uma diferença antagônica entre as formas de entregar tal opinião ao receptor: dilui-la numa xícara de café quente, ou fundi-la num projétil de metralhadora. É essa diferença que muita gente não enxerga ou da qual faz mal uso. As pessoas normalmente esquecem que, quando falamos em opinião, falamos de hipóteses, e não de fatos. Fica fácil pra cada pessoa inventar sua própria realidade, mas difícil para todas as outras adaptarem-se a ela. Eu sugiro que a gente pratique mais a tolerância. Ajeitemos nossas salas de estar e convidemos nossos oponentes para um cafezinho - com biscoitos. Seja bem vindo.