Moro em uma
cidade que, embora seja pequena, é urbanizada. Automóveis e pessoas, bem
vestidas e exalando a perfumes distintos, amontoam-se pelas ruas asfaltadas
entre prédios de diversos tamanhos. Tal cenário se estende pela maioria das
cidades do estado, do país, do mundo. E no meio disso, invariavelmente,
circulam os marginais – como o nome sugere, aqueles que vivem às margens dessa
sociedade. Os desprivilegiados que, por alguma razão, não possuem acesso aos
mesmos recursos daqueles que os desprezam. Falo não necessariamente dos
marginais criminalizados, compelidos a tomar de quem possui aquilo que
necessitam, mas antes disso, falo daqueles que têm a humildade de pedir.
Não sei de
onde ou quando surgiu tal desprezo, mas é inegável que nossa sociedade cultiva
aversão aos marginais em sua essência; os menos providos, os isentos de “status
social”, como se tal condição fosse mais condenável até mesmo do que um crime
propriamente dito. Moradores de rua fazem parte do mesmo cenário de ruas
asfaltadas repletas de automóveis e prédios imensos recheados de pessoas
impecáveis, porém são, para elas, invisíveis. Nota-se facilmente o desconforto
com que comumente se reage a um pedido de “me dá um troco?”, ou ainda, “me dá
comida?”, independente de tal súplica provir de uma criança ou idoso em
evidente estado de vulnerabilidade.
Isso pode
nos levar a crer que o problema em questão é a falta de compaixão, mas não é. O
nosso problema é, evidentemente, com o alvo dessa compaixão. Muitos se comovem
e colaboram com campanhas para ajudar pessoas, ou mesmo animais, com diversas
vulnerabilidades, quando cria-se um rótulo amigável para tal campanha de forma
a livrar o doador do contato direto com a realidade do beneficiado. Mas quando
essa realidade paira diante de nossos olhos – ou mesmo pés, nas calçadas onde
pisamos - a reação costuma ser outra: de indiferença a declarado desprezo. Não
queremos contato com aquilo que é feio ou cheira mal, pois isso fere à nossa
superioridade, ainda que tal contato não seja físico, e sim mera troca de
palavras.
A pior parte
de todo esse processo de desprezo é quando se criam teorias absurdas e
fantasiosas para justificar tal repúdio – afinal, ninguém quer admitir seu
próprio preconceito. Pelo menos por aqui, onde vivo, cresci ouvindo que “não se
deve dar dinheiro a pessoas de rua”, e os motivos para isso são apelativos a um
ponto revoltante. “Pessoas de rua vão gastar o dinheiro com coisas
desnecessárias”, como bebidas alcoólicas, por exemplo. E o pior, “crianças de
rua levam o dinheiro aos pais, para que comprem coisas desnecessárias”; “se for
doar algo, então doe comida, e não dinheiro”; “esmola não resolve o problema”.
É absurdo, mas apesar disso, ouvimos afirmações desse tipo tantas vezes, desde
tão cedo, que as naturalizamos e tomamos por verdade. Mas será mesmo que
acreditamos em tais afirmações? Ou apenas as usamos como um pretexto para não
precisar fazer doações?
Há muitos
anos, na porta de um mercado, um homem desconhecido me reprimiu quando
entreguei algumas moedas a uma criança que me pediu. E depois daquele dia, por
muito tempo, não me permiti dar sequer uma moeda novamente. Até recentemente
não me questionava a respeito do porque, afinal, deixei que um desconhecido,
embalado por mitos que ouço desde a infância, influenciasse na minha forma de
agir nessas situações. Então passei a me questionar por que um morador de rua é
menos digno do que eu de possuir alguns trocados na mão para decidir sozinho o
que lhe é necessário ou não comprar.
Quando subentendemos
previamente que uma pessoa carente usará a doação para finalidades duvidosas, já
estamos expressando um preconceito inegável. Quando predefinimos que o ideal é
doar alimento, estamos assumindo que a única coisa realmente necessária na vida
dessas pessoas é comer, o básico para que não morram, ignorando todas as outras
possíveis necessidades como higiene, saúde, moradia, etc., pois julgamos que
estas pessoas estão num patamar abaixo do nosso – mais ou menos como cães de
rua - e portanto não são dignas de saciar demais necessidades, da mesma forma
como somos. Quando tiramos de alguém a autonomia de decidir por si mesmo o que
lhe é primordial, doando o bem propriamente dito (como comida) ao invés de dinheiro,
deixamos claro que não temos confiança na postura dessa pessoa quanto à forma
como ela empregará tal dinheiro. Mas será que podemos chamar de compaixão ou
benevolência o ato de ajudar a alguém sem ter confiança nele? Neste caso,
doamos-lhe o alimento, mas aprisionamos a sua moral, pois não lhe damos chance
de exercê-la. Em outras palavras, aprisionamos o indivíduo na sua
insignificância de mero beneficiado sem voz e sem dignidade o suficiente para
fazer escolhas. O mesmo acontece também nas grandes campanhas que acumulam e
doam alimentos ao invés de dinheiro. Auxiliamos, sim, por um lado, mas por
outro, ofendemos, pois mantemos a nossa soberania; o controle daqueles que
possuem, perante aqueles que não possuem.
Há poucos
meses, uma garotinha que vende artesanatos, de uma família conhecida
popularmente como “bugres”, me abordou em um bar, pedindo dinheiro ou algum
lanche. Ao contrário de outras vezes, em que eu pedia ao garçom um refrigerante
ou cachorro quente e o entregava à garota, resolvi dar-lhe 5 reais. Foi
estranho para mim, depois de tanto tempo, me permitir tomar tal atitude, ficando
pensativa depois, por alguns minutos. Será que pode mesmo haver algo
coerentemente “errado” em doar dinheiro a uma criança de rua? A menos que se
tome uma atitude alternativa e melhor, é claro, simplesmente deixar de doar não
me parece melhor do que doar. Evidentemente que a doação espontânea não resolve
a raiz do problema, mas pelo menos o faz temporariamente – o que é bem melhor
do que nada. Realmente não consigo ver de que forma doar um pouco de dinheiro
poderia ser prejudicial àquela menina, ou à família dela. Se ela preferisse
comprar comida, tudo bem. Se preferisse comprar shampoo, tudo bem também. Se
preferisse comprar chicletes ou bolinhas de gude, também não seria da minha
conta. Se desse aos pais e eles finalmente comprassem cachaça, é uma pena, mas
de forma alguma isso significa que toda e qualquer situação similar terminará
da mesma forma, não servindo como justificativa para que eu nunca mais doe. A
generalização é um dos piores pretextos para a má vontade. Ademais, não creio
que posso decidir pelo outro o que lhe é ou não necessário, tampouco sinto que
estou de fato fazendo o bem, se não confio naquele que ajudo ao ponto de
dar-lhe uma chance. Apenas espero que aqueles trocados tenham sido úteis, de
alguma forma.